Hoje, é comum encontrarmos em sites de algumas igrejas anglicanas da
linha “anglo-católica” (na verdade, pseudoromanistas), a
designação genérica de MISSA para as atividades
litúrgico-pastorais, nos momentos cúlticos destas comunidades, como
se a Liturgia Anglicana e a Missa Romana fossem a mesma coisa. E não
são. Primeiro é importante lembrar que “anglo-católicos” não
são católicos romanos disfarçados. Quem afirma o contrário disso
está sendo, no minimo, leviano. Muito anglo-católicos, inclusive,
são antipapistas e antiromanistas. Valorizar elementos da Tradição
católica não é, de modo algum, ser um papista. O grande e grave
problema é copiar descaradamente as práticas e a teologia romana,
um significativo e verdadeiro plágio.
Neste pequeno texto vamos analisar por que é imprópria essa
comparação entre a Missa Romana para a designação da Liturgia
Anglicana, sob os aspectos históricos, doutrinários e teológicos.
Como professor de Liturgia Anglicana, não posso me calar diante da
confusão que muitos provocam no uso destas terminologias indevidas,
principalmente pelo fato de que aqueles que procuram o Anglicanismo o
façam de modo a pensar encontrar uma igreja “católica” no
sentido impróprio, no sentido em que não somos.
Somos católicos, não restam dúvidas. É plenamente possível ser
católico sem ser romano. Somos católicos por três motivos.
Primeiro, porque a única Igreja que existe na face da terra é a
Igreja UNA, SANTA, CATÓLICA E APOSTÓLICA, formada por todos aqueles
e aquelas que foram salvos por Jesus Cristo e, por isso, são
chamados cristãos. Católico significa Universal, de todos os povos,
em todos os tempos, para todas as pessoas. O problema é a associação
que se faz entre a designação “católico” e a confusão com o
Romanismo, este sim, ligado ao Papa e ao seu séquito. Somos
católicos porque a Igreja da Inglaterra, da qual descendemos os
anglicanos, não é uma igreja nova, surgida da vontade de Henrique
VIII ou dos seus sucessores protestantes, Eduardo VI e Elizabeth I. O
que houve foi REFORMA, não refundação. Rompeu-se com a instituição
romana, não com a Igreja Católica. Rompeu-se com o Papa, não com a
Fé da Igreja Cristã. A Igreja da Inglaterra e todos os anglicanos
descendem historicamente da Igreja Celta, que tinha uma tradição
paralela com a Igreja Romana, assim como a Igreja Ortodoxa. Por
isso, Henrique VIII não fundou nada.
Segundo, somos católicos porque cremos nos Credos Históricos
(Apostólico, Niceno e Atanasiano), cuja fé expressada é a Fé da
“Igreja Indivisa” – uma Bíblia, Dois Testamentos, Três
Credos, Quatro Concílios, Cinco Séculos. A fé expressa aqui é a
Fé Católica e nela cremos. É a fé dos Apóstolos, dos Mártires,
dos Pais da Igreja.
Terceiro, porque cremos que a Fé é guardada e transmitida de
geração em geração pela ação do Espírito Santo nas Escrituras,
na Tradição (Consenso dos fiéis, ministério dos Bispos como
guardiões da Fé) e na Razão. É a fé de ontem, de hoje e de
sempre. No dizer de São Vicente de Lerins: “Ortodoxia é aquilo
que foi crido em toda parte, sempre e por todos. Diante disso não se
deve permitir que o pragmatismo teológico afaste a igreja das
Escrituras e do ensino que foi crido em toda parte sempre e por todos
os cristãos”.
No entanto, o Arcebispo Thomas Cranmer, verdadeiro reformador da
Inglaterra, quis dar à Igreja uma feição reformada clara e abolir
da prática cristã aquilo que era considerado abuso ou superstição.
Ele mesmo afirma no prefácio do Primeiro Livro de Oração em Comum,
1549: “ com o transcorrer dos muitos anos, esta disposição
piedosa e decorosa dos pais primitivos foi de tal maneira alterada,
violada e esquecida, com a semeadura de histórias incertas, lendas,
responsórios, versículos, repetições vãs, comemorações e
cânones sinodais, que comumente quando se começava a leitura de
qualquer livro da Bíblia, antes de se lerem três ou quatro
capítulos, todos os demais ficavam sem serem lidos”. E qual a
base que ele usou? Como todos os reformadores do século XVI, a base
era a Bíblia Sagrada, única fonte e autoridade da fé e prática
dos cristãos. Essa afirmação está presente em todas as confissões
de fé protestantes e também nos 39 artigos de religião (Artigo
VI). Aliás, foi o distanciamento desses pseudo-romanistas dos 39
artigos e a simples adoção do breve “Quadrilátero de Lambeth”
que gerou toda a confusão que temos hoje e que ora serve de base
para a lavra deste artigo.
O chamado “Quadrilátero de Lambeth” é um resumo de fé, não
uma confissão de fé. Ele pode ser adotado pelos anglicanos? Com
certeza, já que coloca os pontos principais que caracterizam uma
Igreja Anglicana: A Bíblia, Os Credos, Os Sacramentos e o
Episcopado. Mas são estes artigos tão vagos que poderiam
identificar uma centena de Igrejas ou Comunhões além dos
anglicanos.
O que dizem os 39 artigos sobre esse assunto? Em primeiro lugar,
analisemos o artigo XIX, que diz:
“A Igreja visível de Cristo é uma congregação de fiéis, na
qual é pregada a pura Palavra de Deus, e são devidamente
administrados os Sacramentos conforme à Instituição de Cristo em
todas as coisas que necessariamente se requerem neles. Assim como a
Igreja de Jerusalém, de Alexandria, e de Antioquia erraram; assim
também a Igreja de Roma errou, não só quanto às suas práticas,
ritos e cerimônias, mas também em matéria de fé”.
Vejamos: a Igreja de Roma errou em matéria de fé e errou em matéria
de Liturgia. Isso, peremptoriamente, reforça a ideia de que a
Liturgia Anglicana NÃO é a Missa Romana. Por quê? Continuemos a
nossa análise: “A Igreja visível de Cristo é uma congregação
de fiéis, na qual é pregada a pura Palavra de Deus...”. O que
vemos na Missa Romana? Idolatria, culto aos santos e às imagens,
orações pelos mortos, a doutrina da transubstanciação, tudo isso
contrário à pura palavra de Deus – e claramente denunciado nos 39
Artigos de Religião! Além disso, continua o artigo: “...e são
devidamente administrados os Sacramentos conforme à Instituição de
Cristo em todas as coisas que necessariamente se requerem neles”.
Ou seja, também a ministração dos sacramentos deve estar em
conformidade com o que Cristo realizou. Não cremos no batismo
infantil como regeneração batismal, nem na transubstanciação como
resultado da consagração do pão e do vinho na Ceia do Senhor. Não,
a Liturgia Anglicana NÃO é igual à MISSA Romana.
Continuando nos 39 artigos, leiamos o artigo XXV:
“Os Sacramentos instituídos por Cristo não são unicamente
designações ou indícios da profissão dos Cristãos, mas antes
testemunhos certos e firmes, e sinais eficazes da graça, e da boa
vontade de Deus para conosco pelos quais ele opera invisivelmente em
nós, e não só vivifica, mas também fortalece e confirma a nossa
fé nele. São dois os Sacramentos instituídos por Cristo nosso
Senhor no Evangelho, isto é, o Batismo e a Ceia do Senhor. Os cinco
vulgarmente chamados Sacramentos, isto é, Confirmação, Penitência,
Ordens, Matrimônio, e Extrema Unção, não devem ser contados como
Sacramento do Evangelho, tendo em parte emanado duma viciosa imitação
dos Apóstolos, e sendo em parte estados de vida aprovados nas
Escrituras; não tem, contudo, a mesma natureza de Sacramentos
peculiar ao Batismo e à Ceia do Senhor, porque não tem sinal algum
visível ou cerimônia instituída por Deus. Os Sacramentos não
foram instituídos por Cristo para servirem de espetáculo, ou serem
levados em procissão, mas sim para devidamente os utilizarmos. E só
nas pessoas que dignamente os recebem é que produzem um saudável
efeito ou operação; mas os que indignamente os recebem adquirem
para si mesmos a condenação, como diz São Paulo.
Procissão do Santíssimo Sacramento? Essa prática é romanista, não
anglicana. Porém, já vi pseudo-anglicanos, que gostam de usar uma
palavra que tem sido erroneamente utilizada, “ethos”, fazendo
procissão do Santíssimo Sacramento. Absurdo chamar essa prática de
anglicana.
Vejamos mais um artigo, o XXVIII:
“A Ceia do Senhor não só é um sinal de mútuo amor que os
cristãos devem ter uns para com os outros; mas antes é um
Sacramento da nossa Redenção pela morte de Cristo, de sorte que
para os que devida e dignamente, e com fé o recebem, o Pão que
partimos é uma participação do Corpo de Cristo; e de igual modo o
Cálice de Bênção é uma participação do Sangue de Cristo. A
Transubstanciação (ou mudança da substância do Pão e Vinho) na
Ceia do Senhor, não se pode provar pela Escritura Sagrada; mas antes
repugna às palavras terminantes da Escritura, subverte a natureza do
Sacramento, e tem dado ocasião a muitas superstições. O Corpo de
Cristo é dado, tomado, e comido na Ceia, somente dum modo celeste e
espiritual. E o meio pelo qual o Corpo de Cristo é recebido e comido
na Ceia é a Fé. O Sacramento da Ceia do Senhor não foi pela
ordenança de Cristo reservado, nem levado em procissão, nem
elevado, nem adorado”.
Aqui seremos mais minuciosos. A Ceia do Senhor é um sacramento:
participamos da bênção do Corpo e Sangue de Cristo pela fé. Um
sacramento, por definição, é um sinal, um símbolo, ele não é a
realidade que simboliza. Os 39 artigos reforçam a ideia reformada do
Memorial, aliada à noção do recepcionismo, ou seja, da lembrança
da morte e ressurreição do Senhor até que Ele venha e a comunhão
do Corpo de snague de Cristo quando os recebo com fé. Além disso,
há aqui a condenação clara de atitudes romanistas na Liturgia. Não
há aqui a permissão para a reserva eucarística, prática medieval
que tinha por finalidade apenas levar a comunhão aos presos e
doentes e que degenerou na adoração, elevação, procissão e
adoração da mesma. Na mobília de uma igreja anglicana não há
lugar para um “sacrário”.
O artigo XXXI continua com a condenação da Liturgia Romana:
“A oblação de Cristo uma só vez consumada é a perfeita
redenção, propiciação, e satisfação por todos os pecados, tanto
originais como atuais, do mundo inteiro; e não há nenhuma outra
satisfação pelos pecados, senão esta unicamente. Portanto os
sacrifícios das Missas, nos quais vulgarmente se dizia que o
Sacerdote oferecia Cristo para a remissão da pena ou culpa, pelos
vivos ou mortos, são fábulas blasfemas e enganos perigosos”.
Na Missa romana, acredita-se na renovação, na repetição do
sacrifício do Calvário. Veja o que diz este texto, romanista, a
respeito da MISSA:
"1) O que é a Missa?A missa é o sacrifício da Cruz de
Nosso Senhor Jesus Cristo que se realiza sobre o altar.
2) Como pode ser a Missa o sacrifício de Jesus se este morreu na
Cruz há dois mil anos? Pelo rito da Santa Missa, o mesmo sacrifício
realizado há dois mil anos torna-se presente novamente, de um modo
novo, um modo sacramental, ritual, incruento, ou seja, sem
derramamento do Sangue, mas verdadeiro e eficaz.
3) Porque dizemos que a missa é o mesmo sacrifício, presente de
modo sacramental?Por que nela aquele mesmo sacrifício de Jesus se
apresenta diante de nós através de sinais sensíveis que realizam a
graça sacramental. Estes sinais, no caso da missa são as espécies
consagradas, o pão e o vinho que, na consagração, se transformam
no Corpo e Sangue de Jesus pelas palavras que o sacerdote pronuncia."
(http://www.capela.org.br/Missa/manual.htm) .
Isso é MUITO diferente do que dizem os Artigos de Religião. Os
anglicanos creem que o sacrifício de Cristo é único, perfeito e
suficiente. Não fazemos o sacrifício de novo, e de novo e de novo a
cada celebração. Oferecemos a Deus o sacrifício de nós mesmos,
conforme Romanos 12:1-2. Foi por isso, que começou-se a exigir a
remoção dos altares de pedra na Inglaterra após a Reforma. O bispo
Ridley lançou a campanha em maio de 1550, quando ordenou que todos
os altares fossem substituídos por mesas de comunhão de madeira em
sua diocese de Londres. Outros bispos em todo o país seguiram seu
exemplo, mas também houve resistência. Em novembro de 1550, o
Conselho Privado ordenou a remoção de todos os altares em um
esforço para acabar com todas as disputas. Enquanto o livro de
orações (1549) usava o termo "altar", a maioria dos
bispos preferia uma mesa de madeira porque na Última Ceia Cristo
instituiu o sacramento em uma mesa. A remoção dos altares também
foi uma tentativa de destruir a ideia de que a Eucaristia era o
sacrifício de Cristo. Durante a Quaresma em 1550, John Hooper
pregou: "enquanto os altares permanecerem, tanto o povo
ignorante quanto o padre ignorante e mal-intencionado sonharão
sempre com o sacrifício". Como não há sacrifício, não há
um sacerdócio no sentido romano do termo.
Pensemos um pouco: Por que o Arcebispo Cranmer foi queimado por
heresia? O que o levou à condenação? Porque Latimer e Ridley,
outros bispos e mártires, foram alvo da perseguição e condenação
pela Rainha romanista Mary, a sanguinária, filha de Henrique VIII
com Catarina de Aragão e que sucedeu Eduardo VI? Eles eram
contrários aos princípios da Igreja Romana, e inclusive, de sua
Liturgia. Isso digo como teólogo e com estudioso de História, para
quem contra fatos não há argumentos.
No Prefácio do primeiro Livro de Oração em Comum (1549), Cranmer
diz que a grande necessidade das pessoas não era ritual, era a
Leitura diária da Palavra de Deus para a edificação dos fiéis. “A
leitura e ensino da Palavra de Deus foi a característica mais
evidente do Livro de Oração em Comum de Cranmer e este sem duvida
definiu a característica do Anglicanismo. No Prefácio do Livro de
Oração, ele escreveu que era consciente da importância de voltar a
costume dos ‘Pais antigos’ da Igreja,
‘que toda a Bíblia fosse lida uma vez a cada ano…’ que
tanto o clero como o povo deve buscar a piedade e ‘dando frutos
cada vez mais no conhecimento de Deus, e sendo cada vez mais
inflamados com o amor da Religião verdadeira.’ Desde o princípio
do Anglicanismo, a Igreja da Inglaterra colocou o maior ênfase
possível no ensino e instrução.(...)
Contudo, em todo o mundo, a maioria dos Anglicanos estão firmes
mantendo a ênfase “Protestante” no ensino e pregação da
Bíblia, nas doutrinas reformadas da fé como são expressadas nos
Artigos, e a supremacia da Escritura pra ensinar e guiar em todas as
matérias.
“Como Hooker, muitos Anglicanos, consideram as Escrituras como a
autoridade final em todas as matérias, e tradição e razão como
instrumentos ao nosso serviço pra entender as Escrituras; não como
donos que tem autoridade sobre as Escrituras ou parceiros que tem a
mesma autoridade que as Escrituras. Historicamente e teologicamente,
a característica que define o Anglicanismo é sua doutrina
Protestante e Reformada, que reflete os ensinos da Bíblia”
(Robin G. Jordan).
Isso NÃO é Missa romana, nem romanismo!
Em abril de 1552, o Parlamento aprovou a Segunda Lei da uniformidade
do culto e determinou o uso de um novo LOC a partir do Dia de Todos
os Santos. Comparado com o primeiro LOC, este foi mais “protestante”,
eliminando os usos das expressões como Missa, Altar, Sacrifício e
enfatizou a Igreja inglesa como Igreja Nacional. Também proibiu os
costumes, gestos, paramentos e ornamentação no altar ligados à
Igreja Romana. Isso tudo foi ratificado, confirmado, no LOC de 1662.
Sendo assim, não existe missa anglicana no sentido de ser uma
espécie de Missa Romana. Não realizamos sacrifício, por isso não
temos Altar, mas a Mesa da Comunhão ou Mesa do Senhor. Por isso, os
clérigos não são sacerdotes no sentido romano, mas Ministros,
sendo sacerdotes apenas no contexto de que somos um povo de
sacerdotes (Sacerdócio Universal de todos os Crentes).
Deve-se notar também que a Liturgia da Santa Comunhão não era uma
prática dominical no Anglicanismo primitivo. Isso é uma prática
bem recente, surgida no século XIX. Se não, vejamos: por que o LOC
de 1662, logo após a Ordem da Santa Comunhão, traz fórmulas para
que o Ministro avise o povo sobre a celebração? Se fosse uma
prática cotidiana, rotineira, não haveria necessidade de aviso
prévio, haveria?
Sobre isso também afirma James White:
“ A história de sucesso na oração pública diária da Reforma
aconteceu na Igreja da Inglaterra. O arcebispo Thomas Cranmer,
principal arquiteto do Livro de Oração Comum de 1549 e 1552, estava
familiarizado com o trabalho dos reformadores do continente e do
cardeal Quiñones. Ele combinou matinas, laudes e prima do Sarum
Breviary medieval inglês em "Matinas", ao passo que
vésperas e completas foram condensadas no "Evensong". Na
edição de 1552, as designações passaram a ser "Oração da
Manhã" e "Oração da Noite". As horas do meio-dia
desapareceram totalmente. Cranmer esclareceu seu objetivo no
"Prefácio", onde ocasionalmente até usou as palavras de
Quiñones. Ele esperava "que as pessoas (pelo ouvir diário da
Sagrada Escritura lida nas igrejas) haveriam de beneficiar-se cada
vez mais no conhecimento de Deus e ficar mais inflamadas com o amor
da sua verdadeira religião". Acreditando (erroneamente) que os
"antigos pais" tinham previsto leitura diária sistemática
de modo a cobrir "toda a Bíblia (ou a maior parte da mesma)"
a cada ano para o povo, Cranmer eliminou todos os "hinos,
responsórios, invitatórios e similares que efetivamente
interrompiam o curso contínuo da leitura da Bíblia" . "As
regras", segundo ele, eram "poucas e fáceis" e
somente o livro de orações e a Bíblia eram necessários para
conduzir os ofícios. A uniformidade nacional ficaria assegurada, uma
vez que "todo o reino terá apenas um uso".
O esquema é bastante simples; os salmos são "lidos em sua
totalidade uma vez por mês", vários a cada dia na oração da
manhã e da noite, começando da frente no início do mês. A Bíblia
é lida em sua totalidade na sequência (lectio continua), começando
por Gênesis, Mateus e Romanos (Antigo Testamento e evangelho nas
matinas, Antigo Testamento e epístola no Evensong). O restante do
ofício consiste numa magistral combinação de elementos dos ofícios
do Sarum Breviary. Estes incluem o Pai-Nosso, versículos, salmos com
Gloria Patri, duas leituras bíblicas, cânticos, Kyrie, Credo,
Pai-Nosso, versículos e três coletas de encerramento. Uma mudança
ocorreu em 1552 com o acréscimo de um prelúdio penitencial que
consistia em sentenças penitenciais da Escritura, num chamado à
confissão, numa confissão geral e na absolvição. Precedentes para
esta maneira de começar se encontram tanto em Quiñones (nas
matinas) quanto nos reformadores do continente. Em 1662, orações
adicionais e a previsão de um hino foram acrescentadas ao final dos
ofícios. Uma grande tradição de ofícios diários cantados
distingue o culto nas catedrais inglesas.
O sucesso de Cranmer foi indubitável. Com efeito, sua oração da
manhã e da noite, além de proporcionar o ofício diário, tornou-se
o culto dominical anglicano normal por 300 anos. A litania, a
liturgia da palavra da ceia do Senhor e um sermão geralmente eram
ajuntados à oração da manhã aos domingos até o séc. 19 adentro,
causando certa redundância. Mas a piedade eucarística popular e a
comunhão freqüente na Inglaterra tiveram que esperar pelos
metodistas do séc. 18 e pelos tractarianos do séc. 19”.
Continua:
“Os reformadores anglicanos tomaram decisões diferentes, uma
vez que se beneficiaram de orientação gratuita, baseada em duas
décadas de experiência com liturgias vernaculares, dos reformadores
continentais. Sendo basicamente uma revisão conservadora da liturgia
da palavra do Sarum, o rito de Cranmer de 1549 começava com um salmo
de intróito, Pai-Nosso, oração de coleta por pureza, Kyrie, Gloria
in excelsis, saudação, coleta do dia e coleta pelo rei . Seguem-se
imediatamente a epístola e o evangelho, vindo a seguir o Credo
Niceno e o sermão. O culto passa então para a exortação e a
eucaristia. Dois elementos foram transplanta#dos para dentro da
própria eucaristia: intercessões aparecem logo após o Sanctus, e a
confissão vem antes da comunhão. Na versão de 1552 houve uma
guinada na direção reformada: os salmos de intróito desapareceram
e o Decálogo foi acrescentado imediatamente após a oração de
coleta por pureza. As intercessões voltaram para logo após o sermão
e as ofertas, e a confissão agora sucede as exortações,
imediatamente antes do sursum corda. O Kyrie desapareceu e o Gloria
in excelsis foi banido para imedia#tamente antes da bênção final
na eucaristia. Uma rubrica previa a finalização do ofício após a
oração geral de intercessão, quando não se celebrava a comunhão.
Isto permitia separar a liturgia da palavra da eucaristia, após mil
anos de unidade. Por três séculos esta "ante-comunhão"
ou "segundo oficio" com sermão se seguiu à oração
matutina e à litania na maioria dos domingos e a eucaristia não era
celebrada com freqüência na maioria das igrejas paroquiais. Desde
então esse padrão tem sido destrinchado gradativamente, ao longo
dos anos”.
E ainda:
“O primeiro Livro de Oração Comum anglicano, de 1549, trazia
um rito de comunhão vernacular que era visivelmente uma mistura
conservadora do rito Sarum da Inglaterra meridional com a teologia da
Reforma. Boa parte da teologia eucarística do Livro de Oração
Comum de 1549 era deliberadamente ambígua, permitindo interpretações
tanto católicas quanto protestantes. Três anos mais tarde este rito
foi substituído por outro que eliminou a maior parte da ambigüidade
e implicou uma drástica reestruturação. O cânon foi segmentado em
dois. A oblação foi colocada após a comunhão de modo a eliminar
qualquer sentido tradicional de sacrifício. Apesar de alterações
menores feitas em 1559, 1604 e 1662, aquilo que é basicamente o rito
de 1552 continua em uso oficial na Inglaterra”.
Outro detalhe: alguns afirmam que utilizam o “Rito de Sarum” em
suas celebrações, julgando assim celebrar segundo o “Rito
Anglicano”. Em primeiro lugar, a Liturgia de Sarum é uma Liturgia
pré-tridentina, portanto, anterior ao século XVI, sendo incorporado
como um dos ritos latinos, variações do Rito Romano, tal qual os
ritos bracarense e moçárabe, por exemplo. Era um rito usado na
Diocese Salisbury e incorporado como Rito aprovado pela Igreja de
Roma. Um rito romano, portanto. O que se chama hoje de “Uso
Anglicano” é uma alternativa criada pelo Papa João Paulo II para
paróquias que anteriormente foram anglicanas e se ligaram à Igreja
de Roma, em 1980. É uma variante do Rito Romano e assemelha-se, por
isso, à Missa Tridentina. Existem poucas paróquias desse rito,
sendo que todas elas estão nos Estados Unidos da América (EUA). É
portanto, absurdo litúrgico, histórico ou teológico chamar este
rito de anglicano, pois não o é.
Sinceramente, creio que temos agora um momento especial na história
do Anglicanismo. O Papa Bento XVI, através da constituição
apostólica “Anglicanus Coetibus” abriu a oportunidade para
“anglicanos” que tivessem o desejo de uma plena comunhão com a
Sé Romana o pudessem fazê-lo. Mas ainda ali a maioria destes
chamados “anglo-católicos” (e como vimos que não são, são
pseudo-romanistas) não se sentiria a vontade, pois o Papa é um
conservador e esses indivíduos são, em sua ampla maioria, liberais.
Na verdade, temos uma contradição: como podem ser tradicionalistas
(O Papa é um tradicionalista) e ao mesmo tempo liberais? É um
parodoxo, mais um que vem nos desafiar.
Meus amados irmãos pseudo-romanistas: estamos na hora da decisão e
Roma é um caminho alternativo, embora um caminho conservador. Quem
sabe não é a hora de “sair do armário” e assumir seu
romanismo? O mal que estas posturas fez ao Anglicanismo, e no Brasil,
especialmente, é irremdiável. A Igreja Anglicana era promissora,
crescente e missionária...hoje minoritária, desconhecida e marcada
por um sincretismo com o romanismo, sem igual.
Portanto, não confundamos as coisas: a Liturgia Anglicana, conforme
o Livro de Oração em Comum NÃO é igual à MISSA Romana. Se
desejamos descobrir as características definitivas do Anglicanismo
em questões de sua doutrina e ensino, então precisamos voltar, além
do movimento de Oxford do século 19, aos inícios do Anglicanismo,
aos escritos dos Reformadores do século 16.
No seu livro, “Richard Hooker e a Autoridade da Escritura, tradição
e Razão” (Paternoster, 1997), Nigel Atkinson demonstra que Richard
Hooker (1554-1600), reconhecido pelos Anglicanos como um dos seus
teólogos mais importantes, não acreditava que as doutrinas e
ensinos da Igreja da Inglaterra era uma via média entre os ensinos
do Catolicismo Romano e os ensinos Reformados de Genebra. De feito,
Atkinson demonstra que Hooker estava tanto ou mais convencido das
doutrinas da Reforma como seus oponentes Puritanos.(cf. Robin G.
Jordan).