CARTA ABERTA AOS
CRISTÃOS DO SÉCULO XXI
No século XXI, ser cristão é um
desafio. Vivemos num mundo estranho, sombrio, num verdadeiro multiverso
cultural, o que faz com que crenças antigas, tradicionais, como a nossa, sejam
questionadas. O mundo é dominado pelo poder, pelo dinheiro e pelo sexo como
molas propulsoras da sociedade contemporânea. Um mundo em que, de modo
utilitarista, valorizam-se mais as coisas do que as pessoas. E é importante
deixar claro aqui, de antemão, que ser cristão não é necessariamente pertencer
a uma igreja denominacional. Ser cristão é muito mais do que frequentar uma
comunidade, uma igreja, embora haja muitos cristãos nas igrejas e também muitos
não cristãos dentro delas, joio crescendo com o trigo, os quais serão separados
no último dia, segundo as palavras de Cristo no Evangelho. Existem alguns
índices ou características que revelam o que é ser cristão e isso vai muito além
de ter seu nome no rol de membros de uma organização.
Em várias épocas da História, o
Cristianismo “oficial” perseguiu determinadas pessoas, dando um verdadeiro
contra-testemunho da fé verdadeira. Na Idade Média, mulheres eram queimadas
vivas por serem alegadamente bruxas – o grande exemplo é Santa Joana d’Arc; no
período colonial, indígenas e pretos foram vítimas de aculturação, genocídio,
escravidão e preconceito; mais recentemente, a “bola da vez” são os LGBTQIA+ as
vítimas de um discurso de ódio e de exclusão dos meios ditos cristãos,
católicos ou protestantes, com raras exceções.
Esses exemplos, dentre outros,
deixam brechas para que as pessoas julguem a Cristianismo pelas atitudes de
certos “cristãos”. Isso distancia as pessoas, deturpa o verdadeiro significado
do Cristianismo, gera muita confusão e, infelizmente, acaba por afastar as
pessoas da Fonte de toda Vida.
Não é possível julgar o todo pela
parte. Quando se observa determinada questão ou assunto, deve-se ter noção de
seu todo a fim de fazer uma análise crítica de forma racional, clara e, porque
não dizer, condizente com a realidade. Não é porque hoje tem-se líderes
religiosos que amam mais o dinheiro do que as pessoas, que todos os pastores ou
padres sejam assim. Não é porque há casos de pedofilia que todos os líderes
religiosos assim ajam; não é porque existem padres e pastores narcisistas que
isso é a prática comum. É claro que existem líderes religiosos que se
aproveitam da fé ou do desespero de alguns para lucrar com ricas doações e
viver nababescamente, mas isso não é a regra.
Há exemplos positivos, no passado e
no presente, no Brasil e no exterior, de homens e mulheres dedicados à prática
cristã e que não são como esses “banqueiros da fé”. Basta lembrar os exemplos
de Irmã Dulce da Bahia e sua obra assistencial; do Reverendo Martin Luther King
Jr, mártir da luta pelos direitos civis dos negros nos Estados Unidos; de
Willian Wilberforce, membro do Parlamento inglês no século XVIII, cuja luta e
ideais levaram à abolição da escravatura no Reino Unido; de Robert Raikes, que
pensando na alfabetização de crianças pobres, ensinando-lhes a ler, escrever,
as operações fundamentais e princípios religiosos, criou as Escolas Dominicais;
Júlio Lancelotti, o padre dos pobres, que defende e luta por melhores condições
de vida da população de rua de São Paulo e defende a luta de mulheres, pretos e
LGBTQIA+...exemplos positivos não faltam.
São milhares de missionários e
missionárias notadamente na América Latina, África e Ásia cuidando de doentes
em hospitais – portadores de hanseníase, HIV, tuberculose e tantas outras
doenças infecciosas; outros e outras alfabetizando jovens e adultos que são
excluídos que pela falta de leitura; construindo e ensinando a construir casas,
abrigos; distribuindo comida e medicamentos; cuidando de idosos, deficientes e,
sem dúvidas, levando esperanças a milhares de corações ao redor do mundo. Mesmo
estes homens e mulheres citados cometeram e cometem erros na sua caminhada de
fé. Mas como eu disse, são homens e mulheres, pecadores, falhos e incompletos,
mas que buscam em Deus a plenitude e a perfeição que lhes faltam.
Portanto, se julgam-se os cristãos
genericamente pelos maus exemplos, assim deveria ser feito com todas as
categorias humanas: por causa dos médicos ruins (e são muitos) não se deve
acreditar na Medicina? Por causa dos juízes e advogados corruptos (e são aos
milhares) não se deve acreditar no Direito e na Justiça? É claro que não, as
pessoas continuam acreditando na Medicina e na Justiça, mesmo que haja péssimos
profissionais. Por que então desacreditar de Deus ou do Cristianismo pela
existência de maus cristãos? Não se pode, portanto, julgar o todo pela parte.
Acredito que o Cristianismo seja
muito mais do que o péssimo testemunho de alguns de seus adeptos. Por isso sou
cristão, e continuarei a sê-lo, apesar dos pesares...
O Cristianismo não é
uma doutrina, ele é uma pessoa: Jesus Cristo
Dogmas, doutrinas, ensinos podem
ser interpretados de diferentes maneiras em diferentes contextos. Esses
elementos rotulam as pessoas, criam divisões, acirram ânimos, já provocaram
guerras e perseguições.
Com isso, deixo claro que não
desvalorizo a doutrina cristã: Creio na Santíssima Trindade, nas duas naturezas
de Cristo, na Igreja e em tudo mais o que dizem os credos históricos. Creio na
Bíblia como Palavra de Deus, inspirada por Ele. Creio na salvação, no céu, no
inferno e em tudo o que seja conhecido como Doutrina cristã. Tenho alguns
posicionamentos pessoais, teológicos, mas isso não me impede de receber como
cristãos aos que têm basicamente a mesma fé que eu. Sigo o princípio ensinado
por Santo Agostinho de Cantuária: “No essencial, unidade; no não essencial,
liberdade; em tudo, porém, o amor”.
No entanto, o Cristianismo não se
define por esta ou aquela doutrina ou interpretação. Ele nasce pela vida,
ministério, ensinos, paixão, morte, ressurreição e ascensão de uma figura
histórica: Jesus de Nazaré. Sem Ele, não existe Cristianismo, não existe
doutrina, não existe nada. Ele, e somente Ele, é a razão da fé de um Cristão.
Sem Ele, tudo é vazio de significado, nada faz sentido, tudo perde o valor.
E a grande questão que se propõe
neste século XXI aos cristãos e cristãs é uma volta a Cristo, uma genuína conversão,
colocando Cristo como centro de foco de toda a nossa fé. Ele é o modelo.
Lembro-me aqui de um texto, da Epístola aos Hebreus, que clarifica essas
ideias: “Portanto, também nós (os cristãos), visto que temos a rodear-nos
tão grande nuvem de testemunhas (citadas
no capítulo precedente, os chamados heróis da fé), desembaraçando-nos de
todo peso (tudo o que nos atrapalha) e
do pecado que tenazmente nos assedia, corramos, com perseverança, a carreira
que nos está proposta, olhando
firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus, o qual, em troca da
alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da
ignomínia, e está assentado à destra do trono de Deus. Considerai, pois,
atentamente, aquele que suportou tamanha oposição dos pecadores contra si
mesmo, para que não vos fatigueis,
desmaiando em vossa alma. (Hebreus 12:1-3) – grifos meus.
Voltar, portanto, a esse modelo é o
ideal para os cristãos e cristãs do século XXI. Não olhemos para o Papa, Cardeais,
Bispos, Presbíteros, Pastores, Diáconos, Freiras, Líderes, Missionários ou quem
quer que seja. OLHEMOS APENAS PARA JESUS CRISTO! Ele é a fonte da fé, pois
afirmou de si mesmo: Eu sou o Caminho, a
Verdade e a Vida (Jo 14:6).
A realidade do
Cristianismo antigo e do Cristianismo atual
Quando o Cristianismo surgiu, em
uma “esquina” do Império Romano, na Judeia de 2000 anos passados, tinha
desafios que hoje não mais existem ou, se existem, ganharam outras dimensões. Primeiro,
eram um grupo pequeno, uns 500 discípulos liderados pelos apóstolos, num mundo
politicamente dominado por Roma e culturalmente influenciado pelo pensamento
grego. Hoje, os cristãos são aproximadamente 1/3 da população mundial, presente
na maioria dos países. Seu alcance e influência são presentes na maioria dos
chamados países da cultura ocidental e, mesmo no Oriente, como é o caso da
Coreia do Sul, são um grupo extremamente expressivo. Na Antiguidade,
perseguidos, martirizados, tidos como a escória do mundo; hoje, possuem
Universidades e centros de ensino, canais de televisão, propriedades em quase
todas as cidades do globo, influência e liberdade em todas as mídias. No
entanto, diferente dos cristãos da Antiguidade, perderam Cristo do foco, e em
muitas situações o Cristianismo deixou de ser um movimento para se tornar em um
monumento. A influência, o vigor, a coragem dos mártires foi substituída por um
acomodamento ao “status quo”, ao prestígio, ao sucesso ou à fama.
Na Antiguidade, a luta dos cristãos
era por liberdade religiosa (em alguns países do mundo ainda o é), a luta
contra a perseguição ostensiva do Império, para afirmar que Jesus Cristo é o
Senhor, não César. Não se buscava o crescimento numérico a qualquer preço, não.
Ele fluía naturalmente, sem programas especiais ou campanhas de qualquer
natureza. Eles simplesmente viviam a vida cristã, esse era o segredo do
crescimento genuíno das primeiras comunidades - Atos 2:42-47:
“E perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do
pão e nas orações. – eram fiéis em
suas crenças, na vida comunitária, sacramental e espiritual;
Em
cada alma havia temor – a fé era
também vivida na dimensão pessoal
e
muitos prodígios e sinais eram feitos por intermédio dos apóstolos. – tinham um poder vindo do alto que os
habilitava a grandes obras
Todos
os que creram estavam juntos e tinham tudo em comum. –Tinham uma verdadeira visão de partilha, não fazendo diferenças de uns
para com os outros, sem acepção de pessoas
Vendiam
as suas propriedades e bens, distribuindo o produto entre todos, à medida que
alguém tinha necessidade. – estavam preocupados
em demonstrar a fé através de boas obras, levando em conta mais as pessoas do
que as coisas
Diariamente
perseveravam unânimes no templo, partiam pão de casa em casa e tomavam as suas
refeições com alegria e singeleza de coração, - tinham um cuidado especial com a gratidão
louvando
a Deus e contando com a simpatia de todo o povo. Enquanto isso,
acrescentava-lhes o Senhor, dia a dia, os que iam sendo salvos.- como
resultado, o crescimento era natural.
Atos 9:31 também demonstra a vida
das primeiras comunidades:
A
igreja, na verdade, tinha paz por toda a Judeia, Galileia e Samaria, - essa paz era interna, pois era um momento
de acirrada perseguição
edificando-se
e caminhando no temor do Senhor, e, no conforto do Espírito Santo - edificando-se significa que buscava em Deus,
de modo dinâmico, sem se conformar com qualquer tipo de estabilidade
crescia
em número. - como resultado da sua qualidade de vida espiritual
Hoje, o que se vê:
1. Algumas comunidades buscam
crescimento a qualquer custo: prometem milagres, bênçãos, prosperidade, uma “vida
do céu na terra”;
2. Outras comunidades buscam
sobreviver a qualquer custo, fazendo campanhas, eventos, shows, jantares para
ver se atraem mais fiéis; e
3. Muitas outras comunidades se
preocupam apenas com a manutenção de um grupo que está apenas acostumado a se
reunir semanalmente.
Infelizmente, são raras as
comunidades que buscam uma vivência comunitária semelhante à igreja primitiva.
Aquela igreja tinha Cristo como seu foco, por isso tudo era natural.
E mais que isso, uma tendência
contemporânea tem sido o fundamentalismo, explícito ou implícito, em grande
parte do pensamento cristão. Busca-se uma ortodoxia fria, compromissada com “verdades”
baseadas em versículos de prova, que mais tem a ver com a letra que mata do que
com o Espírito que vivifica (2 Coríntios 3:6). Uma leitura cega das Escrituras,
descontextualizada, sem relação com as necessidades do mundo atual. E este
mundo precisa de respostas positivas da Cristandade, afinal, é um mundo de
pessoas doentes, com relações doentes, sem esperanças ou expectativas. E Cristo
é a única resposta satisfatória para corações tão carentes de graça. Aliás, a Graça,
uma das principais doutrinas cristãs, de modo farisaico e contrário ética cristã,
tem sido colocada de lado em nome da Lei, que separa, que divide e que aprisiona
as mentes e não proclama a libertação que Cristo trouxe através de sua vida e
ministério.
Num mundo carente de igualdade e
justiça, muitos chamados cristãos ainda se posicionam contrariamente às causas
das mulheres. Numa pauta patriarcalista, misógina, muitos grupos ainda não
aceitam em plenitude os ministérios e o papel pleno delas nas comunidades. Há
comunidades que tentam justificar teses racistas, como se o Cristianismo fosse
um favor a pretos e indígenas, por exemplo. Num mundo plural, muitos que se
dizem cristãos, não reconhecem que as diferenças de pensamento são uma riqueza
e que a compreensão dos outros, o respeito, o estender a mão (e a outra face,
como diria o Senhor) são essenciais no testemunho cristão. Ao contrário,
demoniza-se o outro em nome de uma verdade que é anacrônica e excludente,
muitas vezes geradoras de violência. E como os LGBTQIA+ são a “bola da vez”,
deixa-se de lado o amor, a aceitação, a individualidade, em nome do ódio, do
preconceito e do individualismo. Muitos se preocupam mais com um moralismo
barato do que em amar e cuidar das pessoas, por pura falta de compaixão,
enxergando-se essas pessoas como mais pecadoras que as demais, engolindo-se
assim um camelo e coando uma mosca. Pensa-se em assistencialismo, com mera
doação de cestas básicas e roupas usadas para se ficar com a consciência
tranquila pelo dever cumprido do que em promover a partilha, reformas sociais e
a defesa dos interesses dos oprimidos. Realmente, um triste quadro.
Portanto, cabe aos cristãos
conscientes e que buscam a primazia de Cristo em todas as áreas da sua vida
reconhecer:
a) que Cristo é a fonte do
Cristianismo;
b) que embates doutrinários e
teológicos só levam a divisão, à falta de amor e de um bom testemunho cristão;
c) que as pessoas são mais
importantes que as coisas, mesmo “doutrinas;
d) que num mundo tão dividido,
ecumenismo e cooperação devem ser vivenciados e incentivados;
e) que é necessário o engajamento
dos cristãos na luta das mulheres, negros, LGBTQUIA+, crianças, idosos,
deficientes e meio ambiente;
f) que a mera caridade não muda o
mundo, e que devem se engajar na luta por transformações sociais e defesa aos Direitos
Humanos;
g) que a nossa fidelidade a Cristo
deve ser embasada numa espiritualidade saudável, na direção do outro, não
contra o outro;
h) que essa espiritualidade deve se
basear nos meios de Graça (leitura das Escrituras, oração, jejum, vida
sacramental e cúltica), sem deixar de lado as obras de misericórdia (dar pão a
quem tem fome, dar água quem tem sede etc. com base na ética do Sermão do Monte
(GRAÇA), e não na ética do Sinai (LEI);
i) que o Evangelho é a verdade e
que é a verdade que liberta os homens.
Molhar alguém com água no Batismo
não tem sentido se o sacramento não for o sinal visível da graça invisível.
Encher igrejas de pessoas vazias não condiz com o Novo nascimento e a Nova Vida
em Cristo. Lembremos que o grande sinal, o grande selo do Cristianismo, a pedra
de toque é o amor, segundo o próprio Cristo: “Novo mandamento vos dou: que vos
ameis uns aos outros; assim como eu vos amei, que também vos ameis uns aos
outros. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se tiverdes amor uns
aos outros. (João 13:34,35). Sem isso, tudo mais é acessório e perde todo
valor.